Ana Paula Prange
Ouvir e falar são atos diários considerados “naturais” ao ser humano. Mas “ouvir realmente” e “expressar-se bem” não são habilidades inatas.
Quando menciono aqui “ouvir realmente” e “expressar bem” não estou me referindo à acuidade auditiva ou ao domínio dos padrões linguísticos, embora isso possa contribuir. Minha proposta é pensar nessas capacidades humanas como habilidades interpessoais.
Escuta ativa
A escuta ativa pode ser considerada uma habilidade relacional essencial, seus benefícios vão muito além do que a escuta passiva e a escuta projetiva podem nos proporcionar.
No caso da escuta passiva a pessoa está presente, sem realmente estar presente. Ou seja, ela escuta o outro enquanto sem realmente fazê-lo. Pode ser que ela pense no que vai dizer no momento seguinte, quando o interlocutor parar para respirar por exemplo.
Nesse caso a expressão do outro é sentida quase como uma perda de tempo. A escuta passiva pode se manifestar também por meio da resposta rápida reativa, visto que compreender o outro em seu referencial não é o objetivo deste interlocutor.
No caso da escuta projetiva [1] há uma projeção sobre o outro daquilo que pensamos que ele quer dizer. Uma “seleção” é aplicada, e a suposição daquilo que parece ser a mensagem mais importante. O conteúdo pode mesmo ser bastante deformado a partir da interpretação do ouvinte. é então interpretado de acordo com o ponto de vista do ouvinte, o que é comum nos processos de comunicação.
O “perigo” desse tipo de escuta é que o ouvinte seletivo não se dá a oportunidade de verificar se o que entendeu é realmente o que parece mais importante para o falante. O primeiro permanece com sua versão. A sua compreensão da mensagem enviada permanecerá parcial.
Ouvir exige coragem porque deixar de lado o próprio referencial é, para alguns, um risco.
A escuta ativa [2] pode ser caracterizada pela compreensão do que o outro quer dizer no contexto atual e a partir do próprio quadro de referência. Isto significa aceitar que quando os outros falam, o fazem do seu ponto de vista. Este último é o resultado de diversas experiências que lhe pertencem, da posição que ocupa (em um grupo por exemplo), de seus gostos, preferencias culturais, religiosas, politicas, etc.
Poder se comunicar levando em conta o quadro de referências do outro demanda energia e tempo. Requer também uma certa disponibilidade para suspender o meu próprio referencial, para poder realmente ouvir o outro.
Ouvir exige coragem porque deixar de lado o próprio referencial representa muitas vezes um risco.
Num mundo ideal, as escolas e as famílias seriam os ambientes apropriados para descobrir a comunicação consciente e afetuosa, bem como a identificação e a livre expressão das emoções, sem medo de julgamento. Este raramente é o caso.
Autoexpressão
Quando uma pessoa fala, ela não é neutra. A própria ação de falar é induzida pelo “ambiente” ou pelos “ambientes” em que está ou é construída. Por sua vez, a fala afirma-se, subjuga-se, liberta-se ou opõe-se. Ao mesmo tempo que uma pessoa se escuta, ela também se constrói em relação a quem a escuta. Quando falamos, dirigimo-nos a alguém que está à nossa frente, mas também ao que projetamos nesse alguém, ao que pensamos que ele está pensando.
Para Baktin,
“. no diálogo, o homem não se manifesta apenas a partir do exterior, mas torna-se, pela primeira vez, o que realmente é e não apenas aos olhos dos outros, repetimos, também aos seus próprios olhos. Ser é comunicar dialogicamente. Quando o diálogo para, tudo para” (p. 344) [3].
Este jogo que envolve falar, ouvir o outro e sentir que alguém nos ouve é uma arte que poucos de nós tivemos a oportunidade de aprender nas primeiras fases do nosso desenvolvimento. Num mundo ideal, as escolas e as famílias seriam os ambientes adequados para descobrir a comunicação ativa, bem como a identificação e a livre expressão das emoções, sem medo de julgamento. Este raramente é o caso.
Assim, em ambientes que não promovem o desenvolvimento emocional, os sentimentos ficam bloqueados. Os julgamentos do ambiente são aos poucos internalizados pelo indivíduo a ponto de ele aprender a bloquear seus sentimentos, suas emoções, suas intuições, seu processo criativo e suas sensações corporais.
Perder o contato com tudo isso torna-se a opção mais sábia, ou pelo menos a mais econômica, para conseguir se adaptar. Estabelece-se uma divisão entre pensamentos, emoções e sensações corporais, o que ajudará a manter esta disfunção. Podem surgir distúrbios psicossomáticos e comportamentais, compulsões, relacionamentos neuróticos e outras dificuldades. Podem ser considerados meios de expressão de um ser que perdeu a capacidade de identificar seus sentimentos, de entrar em acordo consigo mesmo e, portanto, de florescer.
Liberar sua voz pode ser terapêutico. Trata-se de compreender as experiências vividas verbalizando-as num contexto acolhedor onde a ausência de julgamento faz parte do contrato. A escuta empática constitui este quadro propício ao desenvolvimento da inteligência emocional e da autoafirmação.
Mas...
independentemente da benevolência do interlocutor, algumas boas práticas podem ser adotadas para quem deseja se expressar de forma mais autêntica. Estas “técnicas”, específicas da abordagem de comunicação não violenta[4], são:
1) Fale em seu próprio nome e use I em vez de VOCÊ.
2) Concentre-se em fatos e sentimentos. Isto não significa negar interpretações, mas tentar afastar-se delas.
3) Evite também confundir sentimentos com “sentimentos mascarados”. Falam sobre interpretações das ações do outro (Exemplos: sinto-me humilhado... menosprezado... abandonado... valorizado, etc.)
4) Identifique as necessidades (frustradas ou satisfeitas) por trás dos sentimentos.
5) Formular um pedido claro sobre um ponto específico para outro, evitando adicionar cargas emocionais ligadas a situações vividas no passado.
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Aqui está um exemplo
Marie conta ao amigo que se sentiu “abandonada” porque ele esqueceu de ligar para ela no horário marcado no dia anterior. Seu amigo acha a expressão muito forte. Não querendo carregar o peso da culpa, ele passa a se defender falando de situações passadas em que Marie não cumpriu seus compromissos.
Eles trocam uma série de acusações mútuas, após as quais param de se falar por alguns dias. Se Maria entendesse que “abandonado” não é a expressão de um sentimento verdadeiro, mas uma interpretação da ação do outro, talvez descobrisse que realmente sentia tristeza. Ela estava esperando a ligação do amigo e o fato dele não ter ligado na hora marcada a fez pensar que ela não era tão importante para ele.
Ela poderia então ter expressado o que sentia (tristeza) e qual a interpretação que fez de sua ação. Ele poderia, portanto, ter dito a ela que não tinha certeza do lugar para onde queria convidá-la.
Na verdade, ele queria agradá-la e encontrar um lugar encantador. Não tendo encontrado o local ideal, sentiu-se preso e não conseguiu ligar.
Este exemplo mostra como a forma como expressamos sentimentos, ou mesmo não os expressamos, influencia diretamente em nossos relacionamentos.
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Referências bibliográficas
[1] Rogers, C., Farson, Richard E. Active listening.
[2] Mucchielli, A. (1995). La communication projective. Dans : A. Mucchielli, Psychologie de la communication (pp. 151-165). Paris cedex 14, France: Presses Universitaires de France.
[3] Bakhtin, M. (2010). Problemas da “Poética de Dostoievski”. Ed. Forense Universitaire
[4] Rosenberg, M. (2006). Comunicação não-violenta
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